A fabulosa quinta sinfonia de Gustav Mahler

Gustav Mahler era o tipo de pessoa que, se sofresse de uma sinceridade patológica, você não poderia perguntar se está tudo bem caso o encontrasse por aí.

É notório que sua biografia foi marcada por tragédias: a perda de uma filha, doenças severas e perseguição religiosa decorrente do antissemitismo. Ele foi praticamente o estereótipo do herói romântico, ainda que numa época de romantismo tardio. Isso claramente de reflete em sua obra, a qual é composta de sinfonias titânicas, densas, complexas, e com cargas emocionais avassaladoras.

Sua quinta sinfonia, assunto desse post, foi composta entre 1901 e 1902. Antes de começar a compo-la, Mahler sofreu uma grave hemorragia intestinal, perdendo 1/3 de seu sangue. Seu médico lhe afirmou que se o atendimento tivesse demorado uma hora a mais ele não teria sobrevivido.

No entanto, essa sinfonia não foi influenciada apenas pelas tragédias pessoais de Mahler. Neste período, ele também vivenciou um evento muito feliz: o seu casamento com Alma Schindler.

Ter esses fatos em mente é crucial para compreender o amplo espectro emocional desta obra. Temas de morte, vida e amor se intercalam constantemente ao longo da partitura. Dada a intensidade com que esses sentimentos são retratados, eu até arriscaria dizer que, em uma descrição menos científica, esta é uma sinfonia bipolar, oscilando entre o estupor depressivo e a euforia desmedida.

A sinfonia é dividida em 5 movimentos e em duas partes, da seguinte maneira: 1) Parte 1 – a) Trauermarsch; b) Stürmisch bewegt, mit größter Vehemenz; 2) Parte 2 – Scherzo; 3) Parte 3 – a) Adagietto; b) Rondo-Finale. Allegro – Allegro giocoso.

Vamos então comentar movimento por movimento:

PARTE 1

a) Trauermarsch (Marcha Fúnebre)

Coincidência ou não, a Quinta Sinfonia de Mahler inicia-se com um motivo rítmico que remete ao da Quinta Sinfonia de Beethoven (Nota do Editor: Não, não é coincidência), bem como um tema militar do Império Austro-Húngaro chamado “Generalmarsch“. A fanfarra inicial do trompete é um tema icônico na história da música clássica. Particularmente, aprecio muito este início, especialmente quando os instrumentos começam a se agregar em um tom carregado de peso e tragédia.

Após o anúncio da obra, a composição se torna cada vez mais trágica. O primeiro tema das cordas é uma das melodias mais belas que já ouvi numa sinfonia; é como receber uma massagem melancólica nos ouvidos. Quando o primeiro tema retorna, a sensação é semelhante à segunda fase de um jogo de videogame antigo, em que o cenário e os inimigos se repetem, mas o cenário está mais denso e complexo e os inimigos mais poderosos (Quem cresceu jogando Atari 2600 entende essa comparação).

Na terceira vez que o tema retorna, a tragédia se intensifica, como se a tempestade finalmente tivesse chegado. A música evoca a imagem de um furacão varrendo a orquestra – é uma intensidade arrebatadora. Este momento me remete à tempestade retratada na Sinfonia Pastoral de Beethoven e na primeira sinfonia do próprio Mahler.

Após essa tempestade, a composição parece se recompor de seu próprio caos, evoluindo para uma calmaria composta por delicadas variações. Adoro quando um discreto tímpano anuncia uma seção distinta , que, a meu ver, parece representar um contraponto de duas vozes.

No final desta calmaria, há mais uma explosão de emoções. Dos escombros dessa explosão, a fanfarra inicial reaparece, enquanto tudo ao seu redor parece se dissolver. A fanfarra, ao final, parece sucumbir – suas últimas notas são agonizantes, ecoadas pela flauta, e o movimento se encerra com um único toque de pizzicato de violoncelos e contrabaixos.

b) Stürmisch bewegt, mit größter Vehemenz (Movendo-se tempestuosamente, com a maior veemência)

O início do movimento tem um ar diabólico, como se coubesse perfeitamente na trilha sonora de um filme de terror. Porém, rapidamente se suaviza, abrindo espaço para uma bela melodia conduzida pelos instrumentos mais graves da orquestra.

Este movimento começa tumultuado, evoluindo na tonalidade de lá menor antes de se desvanecer em um belo tema calmo e cantabile (semelhante a uma canção) na tonalidade de fá menor. Este tema segue o ritmo de uma marcha fúnebre, pontuada por lamentos dos instrumentos de sopro que evocam breves fanfarras.

O tema inicial retorna então, um pouco mais reservado, porém ainda tumultuado, culminando em duas explosões. A impressão que se tem após o retorno desse tema inicial é a de estar diante de escombros (retratados talvez pelos violoncelos). A melodia parece reconstruir esses escombros de maneira gradativa, através de melodias trágicas e melancólicas que se alternam.

Quando o tema inicial retorna mais uma vez, agora surge em um clímax impressionante, com muitos tímpanos e pratos. O caos parece tomar conta de tudo. No entanto, do caos surge o triunfo, e o mundo e o universo parecem se reorganizar em suas próprias harmonias fundacionais.

Por fim, a música retorna brevemente a um estado caótico na tonalidade de Fá maior antes de finalmente se acalmar na tonalidade de lá menor. O movimento termina de uma maneira que lembra o primeiro movimento, criando uma espécie de simetria temática e emocional dentro da sinfonia.

PARTE 2

a) Scherzo

Este é o meu movimento favorito. Esse scherzo sempre provocou em mim uma sensação de uma alegria falsa, bêbada. Uma alegria artificialmente induzida por álcool que invariavelmente leva a um desfecho negativo. Eu interpreto dessa maneira devido as dissonâncias que deformam o tema alegre, dando-lhe a aparência de uma valsa dançada por bêbados.

Inclusive essa minha interpretação é corroborada pelo próprio site Mahler Foundation, que assim descreve o scherzo: “a alegria exuberante é quase como uma tentativa de afastar a depressão com uma alegria artificial, para se voltar para a vida com força e energia a fim de não ter que escutar a tragédia interna“.

Interessante é também o trecho extremamente reflexivo no meio do movimento. A seção do pizzicato, para mim, é a representação musical de uma ressaca. Após essa parte introspectiva, é possível perceber um contraste chocante: os temas alegres são apresentados de maneira trágica. De repente, o tema inicial retorna, em todo o seu esplendor, exageradamente alegre. Esse retorno triunfante parece completar a narrativa deste movimento, marcado por sua ambiguidade emocional e intensidade contrastante.

PARTE 3

a) Adagietto

Esta é a composição mais famosa de Mahler. Absolutamente linda. E dizem que é uma declaração de amor para sua mulher Alma Schindler. Lembram no começo deste post que é importante ter em mente os eventos felizes da vida de Mahler que foram contemporâneos à composição desta sinfonia?

O que sustenta a hipótese de declaração de amor é o fato que Mahler escreveu um poema para Alma cuja métrica casa perfeitamente com a melodia do Adagietto:

Wie ich Dich liebe, Du meine Sonne,
ich kann mit Worten Dir’s nicht sagen.
Nur meine Sehnsucht kann ich Dir klagen
und meine Liebe, meine Wonne!

(De que maneira eu te amo, meu raio de sol,
Eu não posso te dizer com palavras.
Apenas minha saudade, meu amor e minha felicidade
posso com angústia declarar
)

A importância e influência dessa composição ultrapassam as fronteiras do mundo da música clássica. Um exemplo marcante é a utilização do “Adagietto” no filme “Morte em Veneza” (1971), dirigido por Luchino Visconti.

Abro um parêntesis aqui: Os cinéfilos que me perdoem mas eu acho esse filme muuuuuiiiiittoooooo chato, muito embora a cena que utiliza o adagietto seja de fato belíssima.

O “Adagietto” também teve um papel importante fora do contexto da arte, na vida real. Leonard Bernstein, um dos maiores maestros do século XX e ávido defensor da música de Mahler, regeu essa peça durante a missa fúnebre para Robert F. Kennedy na Catedral de St. Patrick, em Manhattan, em 8 de junho de 1968.

Esses exemplos demonstram o poder emocional do “Adagietto” e o lugar especial que ocupa no repertório clássico e na cultura em geral. Não é apenas uma peça de música, mas uma obra de arte transcendente que fala ao coração humano de maneiras que palavras muitas vezes não conseguem.

b) Rondo-Finale. Allegro – Allegro giocoso

O início deste movimento transmite um sentimento de alegria. Isso levanta a pergunta: poderia este movimento representar uma redenção, uma espécie de resgate após a longa tragédia que permeou a sinfonia até aqui?

Há mais uma semelhança com a Quinta Sinfonia de Beethoven. Em especial quanto ao “tropo” que descreve a jornada da escuridão para a luz (favor ler o meu post sobre a quinta de Beethoven aqui). De forma similar, Mahler parece conduzir sua composição através de um arco narrativo emocionalmente carregado, culminando em um final luminoso e otimista.

Este possível paralelo sublinha a complexidade e profundidade da sinfonia de Mahler. Ela não é apenas um trabalho artístico isolado, mas uma peça que se insere no diálogo maior da tradição musical clássica. Este movimento final sugere que, mesmo após uma jornada tumultuada, é possível encontrar resolução e paz, tanto na música como na vida.

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